Após décadas de teorias sem resultados observáveis, astrofísicos persistem na busca por questão fundamental sobre a origem e a evolução do Universo

ALPs são partículas hipotéticas propostas por físicos teóricos, promissoras para compor a matéria escura – Foto: Daniel Cid/Pexels
A matéria comum — que compõe tudo o que conhecemos, como planetas, estrelas e seres vivos — corresponde a apenas uma fração do cosmos que nos rodeia; 85% do Universo é constituído de matéria escura, partículas elementares que não emitem luz nem interagem com o ambiente de forma perceptível. Evidências gravitacionais indicam que ela influencia na dinâmica cósmica e nos movimentos das galáxias, entretanto, a sua natureza permanece um mistério para a ciência.
Pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP propõem uma forma inovadora de procurar por essa matéria invisível. O grupo simulou a interação entre dois elementos: partículas tipo-áxion (ALPs) – um modelo predito por físicos que é forte candidato à composição da matéria escura – e raios cósmicos, prótons ultraenergéticos que provêm do espaço. A pesquisa sugere que, em ambientes astrofísicos muito densos, este processo resulta na produção de flashes tênues de raios gama, que poderão ser detectados através de telescópios modernos.
A autoria da pesquisa é de Igor Reis, doutorando do IFSC, em parceria com a Universidade Paris-Saclay (França). O trabalho conta com a colaboração de Victor Gonçalves, pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e Aion Viana, professor no IFSC. “Se os raios cósmicos viajam pelo espaço interagindo com a matéria escura, mesmo que fracamente, é muito provável que tenhamos um sinal de raios gama”, diz Viana ao Jornal da USP.
A pesquisa combinou extensos modelos teóricos com técnicas computacionais avançadas. “Nós pegamos a teoria e a colocamos num ambiente real, para deduzir qual seria o fenômeno observável”, explica sobre a simulação. “Assim, podemos prever como um telescópio deveria detectar um sinal de matéria escura, e quais aspectos esse sinal teria.”
Viana faz parte do grupo de pesquisa Apoema (astrofísica de partícula com os observatórios mais energéticos do Universo), cujo objetivo é explorar diversos fenômenos cósmicos. Porém, ao invés de utilizar aceleradores de partículas no planeta Terra, o grupo foca em analisar partículas elementares provenientes de aceleradores naturais do Universo, como restos de supernova e ambientes em torno de buracos negros.
“Usamos telescópios ou detectores de partículas de alta energia que vêm do Universo para estudar a natureza desses raios cósmicos — de onde eles vêm e como são gerados”, comenta. “Também tentamos compreender as interações fundamentais no decorrer desses processos, em ambientes com regimes de energia, densidade e velocidades muito superiores a laboratórios na Terra”, complementa.
Uma breve história da matéria escura
As primeiras evidências sobre este mistério do Universo surgiram na década de 1930, em observações feitas pelo astrônomo suíço Fritz Zwicky (1898-1974). Ele mediu a massa de um aglomerado de galáxias e mostrou que a massa do conjunto era muito maior do que a soma das massas das galáxias individuais, e nomeou essa diferença de matéria escura. Em 1970, a astrônoma norte-americana Vera Rubin (1928-2016) foi responsável por revolucionar o campo da astrofísica, oficialmente constatando que a maior parte da matéria das galáxias é escura.
O Modelo Padrão da física surgiu nos anos 1970 e é a melhor descrição das partículas subatômicas até agora, mas contém muitas lacunas. Dentre as forças fundamentais, por exemplo, não há uma explicação do por que a gravidade é tão mais fraca. Outra grande dificuldade é a assimetria entre a quantidade de matéria e antimatéria no Universo: em tese, depois do Big Bang, havia a mesma quantidade de matéria e antimatéria, mas os astrofísicos detectaram pouquíssimas antipartículas até hoje. A natureza da matéria e da energia escura, a massa dos neutrinos (partículas sem carga elétrica) e a relatividade geral também permanecem inexplicáveis.
Assim surge o campo da Física Além do Modelo Padrão, que engloba teorias para todas essas inconsistências. Entre as propostas da BSM está o áxion, uma partícula elementar hipotética descrita em 1978 por Roberto Peccei e Helen Quinn. Atualmente, astrofísicos supõem que partículas semelhantes a áxions (ALPs) podem estar espalhadas pela Via Láctea e são fortes candidatas para compor a matéria escura.
Desde sua teorização, a busca pela matéria escura gerou grandes avanços científicos e tecnológicos, incluindo novos materiais, sensores hipersensíveis, criogenia e algoritmos para supercomputadores de alto desempenho. “Existe uma dificuldade de estudar fenômenos ocorrendo a milhões de anos-luz, então grande parte [do trabalho da astrofísica de partículas] é deduzir o que é que está acontecendo”, pontua Viana ao Jornal da USP.
Ultratelescópios versus satélites
Viana é representante do IFSC na colaboração SWGO (Observatório Austral de Raios-Gama de Amplo Campo de Visão). Ele também integra o consórcio internacional CTAO (Observatório do Conjunto de Telescópios Cherenkov), cujo objetivo é operar um conjunto de dezenas de telescópios localizados em dois hemisférios e mapear o céu em raios gama. “A ideia de desenvolver técnicas para observar raios gama vindos do Universo começou na década de 1980, com os primeiros telescópios, como o telescópio de 10 metros Whipple”, conta. “É um projeto contínuo, e seguimos empurrando os limites instrumentais observacionais.”
Os raios gama podem ser decorrentes de diversos fenômenos ultraenergéticos e os satélites tradicionais buscam sinais dessas astropartículas diretamente no espaço. Segundo o professor, o maior problema é que os raios gama são extremamente penetrantes e, em condições muito altas de velocidade, podem atravessar o satélite sem ser detectados pelos sensores.
O ponto positivo é que os raios gama interagem com a atmosfera terrestre na forma de chuveiros atmosféricos extensos, que se estendem por quilômetros de partículas e radiação. “O raio gama gera uma cascata de partículas carregadas, pois a camada atmosférica freia as partículas acima da velocidade da luz naquele meio”, explica Viana. Nesse momento de perda de energia, as partículas emitem uma luz ultravioleta, denominada Luz Cherenkov. Os telescópios fixos ao solo buscam captar essa luz resultante dos chuveiros na própria Terra.
“O satélite consegue detectar raios gama num regime de energia em que há muitas outras fontes astrofísicas de radiação, enquanto os telescópios detectam esse mesmo sinal num regime energético em que o céu é muito mais limpo”, comenta. Os satélites detectam raios gama de energias que vão dos megaelétron-volts (10 eV) até centenas de gigaelétron-volts (10 eV), enquanto os telescópios, mais sensíveis, detectam raios gama que vão até teraelétron-volts (10¹² eV) e peta-eletronvolts (10¹ eV).
Os telescópios supertecnológicos em construção são uma conjuntura de vários esforços internacionais das últimas décadas. Alguns modelos de partículas, por exemplo, poderiam ter sido detectados pelo HESS (High Energy Stereoscopic System), em atividade desde 2004. “Como o HESS não detectou, a gente exclui tais modelos, pois se eles fossem viáveis teríamos percebido os sinais. E seguimos testando modelos teóricos mais fortes”, exemplifica o cientista.
A expectativa é que as próximas décadas sejam um momento de virada para a identificação da matéria escura. “Tanto o CTAO quanto o SWGO têm potencial para descobertas muito importantes e esperamos que eles possam chegar nesse limite de detecção”, afirma ao Jornal da USP. “Se eles não encontrarem nenhum sinal, começaremos a questionar bastante a hipótese da matéria escura enquanto partícula.”
Caso a detecção esperada se concretize, o maior desafio para os astrofísicos será compreender os resultados, e o estudo fornece uma maneira de interpretar este sinal. “É um dos maiores problemas em aberto da física de hoje”, conclui.
Mais informações: aion.viana@ifsc.usp.br, com Aion Viana